Impressiona-me muito o fato de que hoje, para a medicina e para o discurso da ciência, o sujeito está fora de qualquer raciocínio sobre a gênese dos sintomas. É como se o corpo fosse uma máquina que pudéssemos controlar e direcionar e criar protocolos para ele. Mas ser sujeito ultrapassa um corpo e só com essa visão podemos nos construir de maneira saudável física e psiquicamente, pois não há como separar estas duas instâncias. Mente e corpo são juntos e não, separados.
O corpo costura registros emblemáticos do real, simbólico e imaginário. Quem quer fazer uma pediatria que realmente pretenda ir fundo na razão dos sintomas, PRECISA ENVEREDAR PELA PSICANÁLISE.
Psicanálise é um discurso que depende da posição subjetiva de quem fala e quem escuta. Sendo seres falantes, somos seres divididos em consciente e inconsciente e uma parte de nós não se inscreve em linguagem. Fica algo por dizer que produz um resto operacional, pulsional – o gozo, que vai sempre insistir, inclusive como sintoma.
O corpo é pulsional, de força psíquica constante. Entre aquele que nos fala e o que entendemos, há um simbólico que nos arranha, que faz suas marcas – é o que na psicanálise, chamamos de LALANGUE. Lalangue é o mundo simbólico que temos de trabalhar desde o nascimento. No início são barulhos da voz, murmúrios, depois vai tonalizando como pura melodia e vai marcando, fazendo os traços. Somos o que escutamos sobre quem somos – “esse é o eu”. O bebê fica excitado, libidinizado pela voz da mãe. Isso vai formar a matriz simbólica do inconsciente.
O sujeito vai depois trabalhar com os significantes que o marcaram, com o sentido de suas significações que podem aparecer em sonhos, lapsos, tropeços, no enigma da palavra e na inscrição do corpo.
Compreendemos, através do olhar da psicanálise, o quanto é importante escutar uma criança, na sua linguagem anterior às palavras. Somos seres da linguagem, portanto, da falta. Ao nascermos, já existe um ninho de palavras à nossa espera. São desejos, fantasias dos pais. Nascemos num mundo que nos antecede e sobrevive até muito depois de nossa morte.
Na natureza, podemos observar, por exemplo, a vaca que lambe seu bezerrinho inteiro até que ele se ponha de pé, sustentando seu corpo contra a força de gravidade. Nós humanos, além de nos por eretos, ainda precisamos chegar à fala. Por isso, precisamos deste banho de língua da mãe ou qualquer outro que nos adote, com seu olhar, seu desejo, e sua tentativa de nos compreender.
O primeiro movimento do bebê ao nascer é procurar o OLHAR de sua mãe. Ele nos dá a existência.
Por sorte, nossa mãe não sabe tudo sobre o que necessitamos. Esta falta de completude, este hiato entre o que deseja um bebê e o que sua mãe não pode compreender, é que nos torna desejantes. Da demanda constrói-se uma necessidade e, desta, através do não entendimento, surge o desejo, e a chance de sermos um sujeito. O não saber da mãe salva.
Então, para existir sujeito há de haver desejo, e para haver um sujeito desejante há de haver falta. É importante a criança poder querer, e mais ainda, não atender todas suas demandas.
Quando acontece o desmame, esta perda leva a criança a pensar substituições desse prazer, mais interessantes e complexas. Assim ela caminha em suas pulsões parciais localizadas, mudando da fase oral para a fase anal e depois para fase genital edipiana, até completar a fase da sexuação na puberdade.
Se a falta não se faz valer, pode criar uma estrutura psicótica. Se a falta é tida como algo do recalque, do impossível, a perda pode se transformar em causa do desejo, criando neuróticos. As neuroses dos adultos são sempre infantis.
SEXUADO E SECCIONADO
Até a sétima semana de vida intra-uterina, anatomicamente ainda não somos sexuados. A partir deste momento, ocorre no embrião uma secção, tornando-nos meninos ou meninas. CURIOSO COMO A PALAVRA SEXUADO VEM DE SECCIONADO. Eis aí, mais uma vez nossa condição sexualizada e seccionada. ESTE É UM DOS GRANDES PILARES DA PEDIATRIA. Não nascemos homens ou mulheres. Será um longo processo psíquico que vai determinar nossa posição sexual na vida.
Se a mãe ou o pai toma o filho como objeto de pura satisfação, e se, não lidaram com sua própria falta, há um grande perigo de capturarem a criança nesta teia como objeto e não como sujeito. Por isto, tantas passam pelas fases da birra, sendo do contra e testando limites. A falta bem posta na mãe, como mulher, abre uma brecha para a entrada do terceiro, que é a função paterna, função simbólica, não necessariamente ocupada pelo pai biológico.
Apesar de tudo, o sintoma é o melhor que ainda se pode fazer diante dos impasses. Hoje, avaliando inclusive os sintomas físicos dentro desta complexidade psíquica, vejo que podemos fazer várias intervenções, na tentativa de prevenir estados mentais adoecidos irreversívelmente.
Alguns exemplos de desenhos feitos durante as consultas, onde a teoria psicanalítica pode ser contemplada.
Garatujas são rabicos rudimentares feitos por crianças. Mesmo quando elas aparecem, surge uma história com sentido.
“ Era uma vez uma menininha de três anos que morava na floresta. Ela encontrou o lobo e foi correndo abraçar a mamãe dela. E ela fugiu pra casa dela. A mamãe e a filhinha encontraram o pai. Todo mundo voltou pra casa muito feliz. O lobo ficou na floresta e o caçador matou o lobo. (O papai tava na floresta brincando com a mamãe).” *
Não fica claro aqui, mas ela tanto fez que conseguiu fazer um furo bem no centro do desenho.
“ Uma cidade. Tem umas cores. Me pus. Ficaram juntinhas umas nas outras. Viradas assim. Emboladas. Mamãe está aqui dentro. A gente tem que pedir alguém ajuda. ” *
“ Uma aranha mãe brincando com o filho de pega pega. A mãe é mais esperta. O filhinho caiu na teia dela. Ele gosta.” *
Tem um quê de autonomia, quase uma necessidade de se aproximar do que é temido e da construção necessária da individualidade.
Essa criança simbolizou com desenho e história a tão temida morte dos pais.
“ Elza está no palácio de gelo que ela mesma fez. A Ana, irmã dela, bate na porta: TUM, TUM! Não gosta de viver com as outras pessoas – tem poderes de gelo. Os pais foram numa viagem e morreram. A porta se abriu sozinha. A Ana entrou e escorregou no gelo. Canta: Nós podemos resolver descer as montanhas.” *
“ -Papai, menino e mamãe (em cima) nasceram no país das formas. “O”, menininha e “A” (embaixo) nasceram no país das letras.” *
O médico, com esta visão do sintoma, é chamado a testemunhar o inconsciente e fazer com que o paciente se implique e se responsabilize subjetivamente, independente da idade que tem. O médico também deve se implicar e, com aquele sintoma trazido, também se ver. O enunciado se transforma em enunciação, seja por palavras ou por leitura dos sintomas corporais. É preciso procurar a cadeia significante de cada um, de cada complexo familiar. Procurar saída no momento luto, um sujeito diante da falta do outro, para realizar o que era antes demanda, agora como puro movimento da pulsão desejo. É preciso que haja uma localização subjetiva do sintoma, procurar a idealização e as identificações, as cifras de gozo.
Isso seria tentar produzir uma eficácia simbólica, uma costura simbólica, um remendo para o real.
As denegações são marcas do inconsciente. Uma espécie de confissão. É muito comum tanto em crianças como adultos. Traz a marca incontestável do sujeito dividido. A mentira é uma tentativa de cobrir o real. Ela tem “perna curta” porque talvez realmente o sujeito não ande. No momento em que o corpo é submetido à linguagem, já estamos instalados na mentira. A própria palavra já diz: “ mim tira” . _Mim tira daqui!!!
Quem tem a chave do sonho é o sonhador. O inconsciente vem cifrado. É preciso tomar o desejo ao pé da letra. Devemos chegar à letra do desejo com o outro, o paciente. É quando a personalidade cede à pessoa. Devemos tomar cuidado para não congelar o trabalho com a interpretação.
Digo muito: “ a mente mente” , o corpo traz o real apesar do imaginário e do simbólico estarem indissociados deste real.
Atendi uma garota de 12 anos que na primeira meia hora da consulta só falou de coisas ótimas de sua vida e de seus pais. Aí eu disse:-“ agora quero o lado B”. Desabou num choro só e começou a falar das questões que realmente a incomodavam.
A falta-ser mobiliza todos os significantes. Como terapeuta, como pais, como amigo, como filho, não podemos atender todas as demandas, porque senão o desejo do outro não aparece. Recebo crianças sem espaço para desejarem, apesar de todas as demandas atendidas. Geralmente são sufocadas de catarros e não sabem bem o que querem.
“Um dia, em off-sina terapêutica com as crianças, cada uma escolhia quem queria ser na brincadeira. Uma criança assim, catarral, tremia os beicinhos, dizendo que não sabia quem queria ser. Sofria. Eu não facilitei. Deixei-o no vazio de seu desejo. No próximo encontro, chegou radiante. Sabia quem queria ser- era o Looney Toones, o pernalonga. Aquele que ganhava pernas e espaço para correr do outro.”
IDENTIFICAÇÃO E MORTE SIMBÓLICA
Dra. Simonete Torres Aguiar
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